Coréia do Norte e sua sobrevivência bizarra: Rede de restaurantes, hackers, escravos e tráfico de drogas.

Um dos últimos resquícios da Guerra Fria, o regime da família Kim, tem sobrevivido contra todas as expectativas devido a três razões principais. O poder de manipular seus próprios aliados — extraindo deles apoio econômico e militar —, a visão de longo prazo e a aparente infinita capacidade de adaptação à sua realidade econômica alternativa, através de uma combinação bizarra que envolve uma cadeia internacional de restaurantes estatais, um exército de hackers e uma rede obscura de todos os tipos de tráfico. São esquemas montados, desenvolvidos e levado a cabo pelo regime, como em nenhum outro país do mundo.

Em meio a diversos pacotes de sanções aplicados pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas, alguns com apoio da China, o mais relevante aliado do regime de Pyongyang, o país segue seu caminho.

A informação é um bem raro na Coreia do Norte. Desde os anos 1960 que não são publicadas estatísticas oficiais pelo Governo e o máximo que os especialistas conseguem discernir baseia-se em informações obtidas pelos serviços secretos sul-coreanos.

A esmagadora maioria dos norte-coreanos sobrevive graças a uma economia paralela florescente. Cerca de dois terços da população ativa não tem acesso ao sistema estatal de distribuição de bens – através do qual são distribuídos os produtos básicos à população, de acordo com o seu estatuto hierárquico na sociedade. Privados deste sistema, a maioria dos norte-coreanos tentou adaptar-se. Podem estar empregados em oficinas ilegais, onde produzem sapatos e roupas. Podem gerir as suas próprias bancas de comida ou lojas.

A política de sanções contra a Coreia do Norte é vista cada vez mais como um beco sem saída – o regime aprendeu a viver e a sobreviver num clima de isolamento, enquanto o peso das privações é suportado pela população.

Na cozinha com Kim

Para o Governo norte-coreano, o acesso a moeda estrangeira é vital. O won desvalorizou tanto nos últimos anos que é hoje equivalente a “papel higiénico”, conforte relatos de uma rede de dissidentes norte-coreanos. O problema parece insolúvel: como é que o país mais isolado do mundo tem acesso a moeda estrangeira?

A liderança norte-coreana encontrou várias soluções, que variam no grau de originalidade e ilegalidade. Uma das mais bizarras envolve uma rede de restaurantes de comida coreana espalhada por vários países asiáticos a partir dos anos 1990. Através de uma empresa pública, o Estado gere mais de cem restaurantes em cidades como Pequim, Jacarta ou Phnom Penh, quase todos com o nome pouco original de “Pyongyang”. Chegou a ser aberto um em Amesterdã, mas foi obrigado a fechar devido a denúncias sobre as condições dos trabalhadores.

Um dos restaurantes da rede da Coreia do Norte
As garçonetes dos restaurantes do governo da Coreia do Norte são formadas na Escola Estatal de Arte de Pyongyang.

O que diferencia esta rede de restaurantes não é a comida, são as garçonetes. Logo depois de servir uma mesa, as jovens sobem em um palco para mostrar suas virtudes musicais, executando desde trechos de ópera até músicas no violino.

O trabalho num destes restaurantes é considerado um bom emprego em comparação com a média na Coreia do Norte. As empregadas destes restaurantes são escolhidas entre as famílias mais poderosas do país e devem passar testes de fidelidade ao regime. Apesar dos testes, dezenas de pessoas que trabalhavam nos restaurantes “Pyongyang”, já desertaram. Há a estimativa de que cerca de 30 mil norte-coreanos tenham fugido para a Coreia do Sul desde o fim da Guerra da Coreia em 1953.

Restaurante norte-coreano
O governo da Coreia do Norte tem cerca de 130 restaurantes espalhados por 12 países.

Como tudo relacionado à Coreia do Norte há toda uma variedade de teorias. Em um extremo poderia se dizer que os restaurantes são um mecanismo para mostrar a cultura norte-coreana e melhorar a imagem do país no exterior. No meio do espectro podemos falar de uma estratégia para obter moeda estrangeira. E, no outro extremo, estão os que falam de garçonetes espiãs ou lavagem de dinheiro. Seul tem multiplicado as recomendações para que os cidadãos evitem os restaurantes da rede para não apoiar o regime do Norte.

Acredita-se que os restaurantes são controlados diretamente pelo misterioso Gabinete 39, uma agência secreta do Partido dos Trabalhadores da Coreia do Norte, que veremos a seguir.

O Gabinete 39

Para “comprar” a lealdade da elite que o rodeava, o anterior líder, Kim Jong-il, estabeleceu nos anos 1970 um fundo secreto conhecido como “Gabinete 39”, que há vários anos é alvo de investigações. O Departamento do Tesouro dos EUA define-o desta forma: “O Gabinete 39 é um ramo secreto do Governo da Coreia do Norte envolvido em atividades econômicas ilícitas, gere um caixa dois e gera rendimentos para a liderança.” Sem dados precisos torna-se muito difícil saber quanto vale este fundo, mas especialistas norte-americanos dizem que pode render cerca de dois bilhões de dólares por ano.

Parte da sua acção é gerir os negócios de um grupo estatal chamado Daesong, que inclui, entre outras actividades, um banco e empresas de venda de metais e pedras preciosas. Um ex-funcionário que fugiu recentemente contou ao que fazia parte de uma empresa que comercializava ouro contrabandeado para a China.

Mais recentemente, um dos setores que passou a entrar nas contas do Gabinete 39 foram as Forças Armadas. Nos anos 1990, o pai de Kim Jong-un prometeu aos militares um acesso extraordinário à política e ao orçamento, a troco, segundo a maioria dos analistas, de não derrubarem o regime após o fim da Guerra Fria.

A convicção no círculo próximo de Kim é a de que o desenvolvimento nuclear é a única forma de impedir uma mudança de regime forçada pelo Ocidente e, portanto, será algo de que dificilmente abdicará.

Hackers

Uma das fontes de rendimento encontradas pelo líder Kim Jong-un para manter o seu programa nuclear é mais preocupante. A Coreia do Norte tem ao seu serviço um exército de cerca de 6800 hackers concentrados sobretudo em operar esquemas de jogos online e obter arquivos criptografados para depois os vender. As atividades desta atividade rendem mais de 800 milhões de euros todos os anos para os cofres norte-coreanos.

O general do exército norte-americano responsável pelas forças na Coreia do Sul, Vincent Brooks, disse que a unidade ciber-militar norte-coreana está “entre os melhores do mundo”. Os serviços secretos norte-americanos consideram que foram hackers ligados à liderança norte-coreana os responsáveis pelo ataque aos servidores da Sony, que em 2014 expuseram emails sensíveis de produtores e atores, nas vésperas da estreia de um filme que ridicularizava o regime de Pyongyang.

De marfim a heroína

A Coreia do Norte também consegue divisas fortes exportando trabalhadores (e embolsando quase todo o seu salário), e com uma vasta rede de contrabando, que vai de mísseis a marfim de rinoceronte, passando por drogas sintéticas.

Em meados de 2016, as importações e exportações norte-coreanas somaram cerca de 6,5 bilhões. O montante tem aumentando em média 5% ao ano, sendo a China seu cordão umbilical: compra o seu carvão e outros minerais, e lhe fornece alimentos e combustível. Esse comércio bilateral de minérios representa 1 bilhão de dólares em exportações por ano, ou um terço de todas as vendas externas do país.

Líder norte-coreano Kim Jong-Un sorri durante visita a instituto químico
Kim Jon-Un: as importações e exportações norte-coreanas somam bilhões de dólares todo ano (KCNA/Reuters)

A principal razão pela qual a China não abandona a Coreia do Norte é de ordem geopolítica: a queda do regime norte-coreano levaria à unificação da península sob o domínio da Coreia do Sul, que abriga 28.000 soldados americanos, além de baterias de mísseis e outros equipamentos. Ou seja, um aliado militar dos EUA passaria a fazer fronteira com a China — e com a Rússia.

Mas um colapso da Coreia do Norte também teria consequências econômicas e sociais na China: cerca de 70% do comércio bilateral passa pela província chinesa de Liaoning, uma das mais pobres do país, que faz fronteira com a Coreia do Norte, e o contrabando também irriga sua economia. Além disso, a China teme uma avalanche de imigrantes norte-coreanos.

Escravos e mafiosos

Estima-se que haja 147.600 trabalhadores da Coreia do Norte no mundo — 80.000 na China e 53.000 na Rússia. Mongólia, Kuwait, Emirados Árabes Unidos e Catar também abrigam milhares de trabalhadores norte-coreanos. Cada um envia em média 7.000 dólares por ano para o governo do país, o que representa uma receita de mais de 1 bilhão de dólares para o tesouro norte-coreano.

Além disso, as embaixadas norte-coreanas no mundo são notórios entrepostos de contrabando. Em Havana, por uma porta dos fundos da representação do país eram vendidas até alguns anos atrás mercadorias caras e difíceis de conseguir em Cuba, como manteiga.

Mas produtos bem mais sensíveis passam pelas bagagens dos diplomatas norte-coreanos. Relatório divulgado no ano passado pela Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional, baseada em Genebra, afirma que eles estiveram envolvidos no tráfico do marfim de chifres de rinocerontes e presas de elefantes na África desde 1989. Das 29 apreensões nesse período, 16 tinham a participação de norte-coreanos. Com a chegada de Kim Jong-un ao poder, há cinco anos, a atividade se intensificou. O principal mercado desses produtos é a China, onde são usados para fins medicinais.

Fontes na Coreia do Norte afirmam que a indústria farmacêutica do país recebeu ordens do regime de aumentar a produção de drogas ilícitas em escala industrial para o contrabando internacional, de maneira a suprir a redução de receitas em divisas fortes, causada pelas sucessivas sanções. O país tem uma tradição de produção de narcóticos, incluindo heroína feita a partir de papoula cultivada em fazendas estatais e drogas sintéticas preparadas em laboratórios das universidades.

Uma aliança com o Paquistão permitiu também, no anos 90, a exportação da tecnologia de mísseis que a Coreia do Norte recebeu da China, em troca de informação sobre técnicas de enriquecimento de urânio transmitidas pelos paquistaneses.

Todos esses negócios misteriosos e obscuros que despertam muita curiosidade ao redor do mundo envolvem muita criatividade. Como um país embargado pode comprar a limusine blindada Mercedes-Benz S600 Pullman Guard para uso do chefe de estado?

A operação de transporte levou seis meses e envolveu cinco países até a chegada à República Popular Democrática da Coreia, porém, até agora, ninguém descobriu como o veículo foi comprado – e a Mercedes-Benz nega a venda. Tanta burocracia se deve ao fato de que, desde 2006, o país asiático vive sob sansão de artigos de luxo, ainda assim, cerca de 90 países burlaram essas limitações até 2017.

Mercedes-Benz S600 Pullman de Kim Jong-un, ditador da Coreia do Norte

Com informações de fontes de domínio público, sabe-se que a limusine saiu do porto de Roterdã, na Holanda, e partiu em navio até a cidade chinesa de Dalian, a partir deste momento que a logística se mostra ainda mais surpreendente.

Após ficar cerca de um mês parado em território chinês, o contêiner carregado com o S600 de Kim Jong-un segue a Osaka, no Japão e segue até Busan, na Coreia do Sul. Após subir a bordo de um navio com bandeira do Togo e seguir rumo ao porto de Nakhodka, no extremo leste da Rússia, o contêiner (assim como a própria embarcação) desapareceu dos radares por 18 dias, quando o navio reapareceu, a carga já não estava mais a bordo.

O veículo desembarcou em território russo sob os cuidados de uma empresa sediada nas Ilhas Marshall e só então seguiu seu destino rumo à Coréia do Norte, por meio dos aviões da companhia aérea norte-coreana Air Koryo.

Uma história bizarra e preocupante, considerando que essa logística provavelmente serve para comercializar qualquer coisa, incluindo drogas, materiais bélicos e até mesmo arsenal nuclear.

Para um país comunista, até que a Coreia do Norte tem se virado bem no mercado internacional.

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