Embora a ideia mesma de tecnocracia não seja nova, em 2020 ela voltou a ganhar força, especialmente a partir dos discursos (supostamente “científicos”) usados para levar a efeito uma série de medidas altamente problemáticas, como a imposição do isolamento social e a obrigatoriedade do uso de máscaras, apenas para citar as mais evidentes.
Com efeito, a tecnocracia se tornou bastante popular nos anos 30 do século XX. Foi um período em que se passou a atribuir muita esperança à ciência e à tecnologia (e aos ditos “cientistas” – especialmente engenheiros e técnicos).
Acreditava-se que a ciência e a tecnologia levariam a humanidade a um “mundo melhor”. Tal ideia não era nova.
Em minhas aulas costumo citar Platão como um dos principais expoentes dessa ideia de um governo de sábios (“ungidos”). Em sua obra “A República” ele já nos falava em uma sociedade dividida em castas, a qual seria fechada e sem qualquer mobilidade social.
Ela seria administrada pelo “rei filósofo”, um sábio que saberia melhor que os demais sobre como gerir a sociedade (e sobre como os demais deveriam viver suas vidas). Ou seja, Platão foi o precursor não apenas de uma “sociedade fechada” (como posteriormente afirmará Karl Popper), mas de uma sociedade centralizada na figura de um planejador central.
Trata-se, pois, de uma ideia que hoje compreendemos como radicalmente antiliberal, muito apreciada por regimes totalitários centralizadores. Obviamente a obra de Platão é espetacular do ponto de vista da construção de seus argumentos e da estética literária. No entanto, ele mesmo fracassou ao tentar leva-la a efeito.
Ele descobriu, da pior forma, o óbvio: tal modelo de sociedade não funciona. Pelo menos não enquanto estamos cientes de nossa individualidade e liberdade.
Se nossa liberdade individual pudesse ser “apagada” de nossas mentes, então talvez pudéssemos chegar a um regime nos moldes propostos por Platão e por todos os demais defensores de sociedades fechadas e planificadas.
Mas voltando aos anos 30 do século XX, nesse período avançou a tecnocracia, a qual pretendia justamente resgatar a ideia platônica de uma sociedade regida por uma mentalidade centralizadora, supostamente mais “sábia” que o conjunto das vozes individuais.
Noutros termos, a ideia era deixar a administração da sociedade para uma “elite” de sujeitos que, dadas suas qualificações intelectuais, seriam mais aptos a determinar como todos os demais deveriam conduzir suas vidas.
Na primeira metade do século XX foi inclusive criada, nos USA, uma sociedade com esse propósito, chamada “Aliança Técnica”, a qual era formada sobretudo por engenheiros e técnicos. Dentre os nomes ilustres que participaram dos encontros da “Aliança Técnica” está o de Albert Einstein.
Sem embargo, o contexto histórico dos anos 30 do século XX, de grave recessão econômica, favoreceu (tal como ocorre hoje) o discurso que conduziu à tecnocracia. Segundo seus defensores, a tecnocracia seria uma forma de governo cuja base seria a ciência e a engenharia.
Do seu ponto de vista, o sistema de uma economia de mercado não teria funcionado. Portanto, engenheiros e técnicos deveriam assumir o controle da sociedade, da economia, etc. Assim, em 1933 foi fundado, nos USA, o movimento tecnocrata (‘Technocracy Inc’), o qual esteve ativo até 1944.
Não obstante, ele não foi plenamente encerrado, pois ainda hoje seus adeptos mantêm um site com suas propostas. Com efeito, desde seus primórdios a tecnocracia avançou diversas ideias hoje bastante comuns no discurso daqueles que defendem uma “nova ordem mundial”, como a de “sustentabilidade”, isto é, de que devemos viver em “harmonia” com a natureza.
Além disso, desde suas origens o movimento é favorável à engenharia social, à eugenia, à planificação, ao controle social, à rejeição da religião (considerando-a mera superstição), à amoralidade (o que permite intervenções visando à eugenia e ao transhumanismo, por exemplo), ao materialismo, etc.
Um modelo atual que incorpora muitos elementos da tecnocracia é o modelo imposto à China pelo partido comunista chinês (PCC). Trata-se de um modelo social de quase total subjugação dos indivíduos, os quais são brutalmente tolhidos em sua individualidade e liberdade.
Ou seja, um governo centralizador, supostamente mais apto a decidir o que as pessoas devem pensar, fazer, etc, mantém uma quase onipresença na vida de seus cidadãos, vigiando atentamente suas falas, ações, opiniões, etc.
E para tanto o PCC mantém um complexo sistema de crédito social, monitorando de forma impressionante as vidas de toda a população, atribuindo aos sujeitos uma pontuação, os punindo ou recompensando em virtude de suas manifestações, comportamentos, etc. Nesse caso o “rei filósofo” é o líder do PCC.
Portanto, a tecnocracia é uma corrente muito próxima de vertentes socialistas. Alguns aspectos fundamentais são compartilhados por elas.
Na verdade, a tecnocracia tem se mostrado um eficiente mecanismo para se implementar ideais socialistas, como a as já referidas ideias centralizadoras (planificadoras) e o fim da individualidade e da liberdade, isto é, a subjugação da liberdade individual.
A China tem aplicado exemplarmente a tecnocracia (apesar de deixar de lado o aspecto da “sustentabilidade” – sendo uma voraz predadora da natureza).
Com efeito, o avanço da tecnocracia, a qual jamais foi abandonada, se faz sentir nos dias que correm.
No ano passado (outubro/2019), por exemplo, ocorreu um evento muito revelador na cidade de Nova York, o qual foi organizado pela Johns Hopkins University e chamado de “Evento 201”.
Tal evento pretendia “simular” uma situação de pandemia, avaliando como as pessoas se comportariam e como deveriam ser as ações em um contexto pandêmico. Tal evento foi feito em parceria com o ‘Fundo Econômico Mundial’ (FEM) e com a ‘Bill and Melinda Gates Foundation’.
Meses depois do “Evento 201” eis que, “coincidentemente”, ocorreu o surto do coronavírus.
A seguir tivemos uma série de medidas extremas sendo impostas, as quais nunca foram vistas anteriormente, mesmo em situações talvez mais graves que as atuais. Evocando o mantra “ciência”, muitos políticos e outras autoridades simplesmente decidiram o que era “melhor” para a população.
E o melhor, de acordo com tais “reis filósofos”, era o isolamento social, o afastamento, a reclusão e o uso de máscaras. Em suma, tais “ungidos” decidiram pôr um fim à liberdade (em todas as suas expressões) e à individualidade. Perdemos a autonomia de forma assustadoramente pacífica.
E tudo em nome de uma suposta “cientificidade”. Vozes destoantes dessas medidas (que incluem desde agraciados com o prêmio Nobel até pesquisadores de importância internacional) foram simplesmente caladas e aprisionadas em Gulags digitais.
Usando como pretexto uma preocupação com a saúde, com as vidas, testemunhamos a retirada, talvez definitiva, de nossa liberdade. É importante termos isso em mente: nossa liberdade já não é um direito natural, inato.
Ela passou a ser uma mera concessão. Se nesse momento podemos ir às ruas, isso apenas ocorre porque prefeitos, governadores, etc, estão nos concedendo essa possibilidade.
Não se trata de direito, mas de concessão. E por se tratar de uma concessão, ela pode ser abruptamente revogada.
Amanhã algum prefeito ou governador pode simplesmente editar um decreto nos proibindo de ir às ruas, fechando as atividades econômicas, etc. E ele certamente alegará que está “escutando a ciência”. Vejam como a tecnocracia pode ser usada para planificação e tolhimento das liberdades individuais.
O fato é que estamos começando a viver em um sistema similar ao sistema chinês de crédito social.
Atualmente, se não mantemos o distanciamento social, se não usamos máscaras, por exemplo, não podemos ser servidos em um restaurante, em uma loja, etc. Aliás, nem podemos entrar em estabelecimentos sem estarmos usando máscaras e mantendo o distanciamento arbitrário imposto.
Já não podemos viajar em transportes coletivos se não nos submetemos a essas regras. Na prática, já estamos em um sistema de crédito social similar ao chinês. Mas as coisas não param nisso.
Faz parte do “grande reset” proposto pelo FEM a aplicação de vacinações compulsórias. Ou seja, talvez sejamos isolados socialmente caso não nos submetamos a mais essa medida. Exatamente como ocorre com os chineses com pontuação negativa no sistema de crédito social chinês.
Como mencionei acima, modelo totalitário algum logrou funcionar plenamente. Todo sistema ditatorial enfrentou um obstáculo: a liberdade individual.
Dada nossa natureza sui generis, até esse ponto nossa individualidade e nossa liberdade sempre emergiram contra imposições tirânicas. Mesmo em países como China, Coreia do Norte, Venezuela, Cuba, há indivíduos arriscando suas vidas e lutando pela liberdade.
De forma não tão arriscada, vejam as recentes fotos de praias lotadas no Rio de janeiro e em São Paulo.
Em minha opinião, essa é uma forma de “desobediência civil”. Como escreveu Thomas Jefferson logo ao início da declaração da independência dos USA, “consideramos estas verdades como auto evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”.
As praias lotadas são, a meu ver, um exemplo da desobediência, de ações livres e descentralizadas. Portanto, louváveis expressões de desobediência contra aqueles que querem pôr fim à liberdade e à individualidade.
Portanto, para os tecnocratas (assim como para os socialistas) a liberdade é o grande problema.
Mas eis que agora está avançando outra ideia perniciosa muito cara aos tecnocratas: o transhumanismo, isto é, a fusão de mentes individuais biológicas com a inteligência artificial.
Talvez não por acaso um dos atuais maiores investidores na área do transhumanismo seja Elon Musk, neto de Joshua Haldeman, um dos diretores da já citada ‘Technocracy Inc’.
Elon Musk e sua Neuralink já estão em fase de testes (por enquanto em animais) de um chip (com conectividade bluetooth e WiFi) do tamanho de uma moeda para implantação no cérebro.
Será o anúncio do fim de nossa individualidade (e, consequentemente, liberdade)?
Se a resposta a essa questão for “sim”, então os tecnocratas terão, enfim, a realização de seu sonho: uma sociedade de autômatos.
Logo, sem resistência e totalmente administrada por uma elite de “reis filósofos”, de ungidos planificadores para os quais seremos meras peças em um complexo sistema social.
Peças que, quando já não se “encaixarem”, poderão ser simplesmente descartadas. Já não seremos indivíduos. Tampouco livres.
Em verdade, tampouco seremos humanos, pois individualidade e liberdade são precisamente a essência daquilo que nos torna humanos.
Por Carlos Adriano Ferraz (Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), com estágio doutoral na State University of New York (SUNY). Foi Professor Visitante na Universidade Harvard (2010). É professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), bem como membro do Docentes pela Liberdade (DPL) nacional e diretor do DPL/RS.)